Especialistas dizem que pode ser uma solução para reduzir a morte de animais e, consequentemente, diminuir a pegada ecológica
A primeira experiência da CNN Internacional foi com um prato de almôndegas com carne de porco criada em laboratório. Primeira impressão? É um pouco espessa e mais pequena - não é propriamente aquela versão clássica que se derrete na boca e que é servida em qualquer restaurante italiano com toalhas aos quadrados vermelhos e uma dose generosa de queijo parmesão. Mas está bem dourada por fora e o sabor é intenso e cheio de sabor. O cheiro a carne de porco acabada de ser cozinhada pairava na cozinha.
E isto é só o início, disse o chef Mark Schomberg. Imaginem o que será possível fazer-se daqui a um ano.
Há uma razão para estarmos sentados a uma curta distância da Universidade de Oxford, em Inglaterra, a desfrutar destas almôndegas. É que elas são uma experiência científica e não provêm de um matadouro, mas sim de um biorreator que está numa sala ao lado, utilizado por uma start-up britânica chamada Ivy Farm Technologies.
Fundada em 2019, a Ivy Farm faz parte de um batalhão de empresas que angariam milhares de milhões de dólares de investidores para mudar a forma como comemos.
Neste momento, apreciar um bife suculento ou uma sandes de frango crocante obriga-nos a estar atentos à forma como a nossa alimentação pode prejudicar os animais e contribuir para a crise climática. No entanto, estas start-ups dizem que ao produzir células animais num laboratório podemos acabar com essa problema - protegendo a nossa alimentação sem comprometer a nossa ética e sem destruir o planeta.
"A maioria dos consumidores do mundo adora comer carne", afirmou Rich Dillon, CEO da Ivy Farm. "A transição para uma dieta com base vegetal não está a acontecer com a rapidez que deveria. Se não produzirmos carne de forma diferente, vamos ficar sem recursos no planeta."
A carne criada em laboratório - ou carne "cultivada", como os membros da indústria começaram a designá-la - pode parecer rebuscado. No entanto, é uma realidade que está cada vez mais próxima de chegar aos nossos pratos.
O sector tem tido uma explosão de financiamento nos últimos dois anos. A Ivy Farm tem 18.000 metros quadrados, diz-se ser a maior da Europa, tem um biorreator com capacidade para 600 litros, chamado "Betty", e uma cozinha de teste novinha em folha. Há ainda um amplo espaço para os 50 funcionários, com pufes e mesas de reunião ao lado de slogans como "We are forking fearless" ("Estamos a espetar o garfo sem medos", numa tradução à letra).
As agências reguladoras também estão a embarcar nesta aventura. No mês passado, o regulador norte-americano, a Food and Drug Administration, afirmou, pela primeira vez, que um produto de carne criada em laboratório é seguro, o que representou uma importante conquista para o sector. Neste momento, Singapura é o único país a permitir a venda de "carne cultivada", tendo dado luz verde no final de 2020.
Embora a Ivy Farm tivesse planos para comercializar as suas salsichas na Grã-Bretanha no próximo ano, está agora a considerar os Estados Unidos como primeiro mercado. Aliás, neste momento, querem juntar o mais rápido possível todos os dados que necessitam para apresentar a documentação ao regulador.
Ainda assim, cumprir com a promessa de carne criada em laboratório não depende apenas dos reguladores.
Apesar do forte investimento, a indústria ainda não descobriu como aumentar rapidamente a produção para satisfazer a procura e reduzir os custos. O primeiro hambúrguer produzido em laboratório, servido em 2013, custou mais de 300.000 dólares (cerca de 280 mil euros) para ser desenvolvido. A Ivy Farm garante que poderia produzir um produto semelhante por menos de 50 euros – seria uma melhoria significativa, mas, ainda assim, quase 10 vezes o preço de um Big Mac.
Cultivar, ou produzir laboratorialmente, mais carne vai exigir feitos sem precedentes ao nível de engenharia e renovação de cadeias inteiras de abastecimento, uma vez que o sector depende de materiais e equipamentos tradicionalmente utilizados para desenvolver vacinas ou medicamentos. Com os biofármacos, os pequenos carregamentos vendem-se a preços elevados. A produção alimentar requer o oposto.
Depois há ainda a questão do gosto pessoal dos consumidores. Embora os inquéritos indiquem uma vontade de experimentar produtos de carne cultivada, muitas pessoas não estão ainda devidamente informadas sobre este conceito.
"Como qualquer outra coisa nova, algumas pessoas vão entusiasmar-se e interessar-se pela novidade, ao passo que outras vão querer esperar", referiu Vijay Pande da Andreessen Horowitz, que liderou o primeiro enorme investimento de capital de risco na carne cultivada no início deste ano. "Penso que isto é algo que vai evoluir bastante em termos de sabor e de custo."
Porque é que se está a criar carne em laboratório?
A procura por carne está a aumentar à medida que a população mundial ultrapassa os 8 mil milhões e a classe média se expande em países como a China. Mas há um problema: satisfazer essa procura pode comprometer as perspectivas de manter o aquecimento global sob controlo.
A indústria pecuária é responsável por cerca de 15% das emissões de gases com efeito de estufa produzidos pelo homem, segundo dados das Nações Unidas (ONU). As calculadas 7,1 gigatoneladas de emissões que este sector produz por ano são superiores às emissões dos Estados Unidos, do Reino Unido e da Alemanha em conjunto. As árvores para pastagem de gado são também responsáveis por quase 40% das perdas florestais globais.
As soluções passam por incentivar as pessoas a comer menos carne, principalmente em países ricos, ou promover alternativas à base de plantas como a 'Beyond Meat' ou os 'Impossible Burgers'. Mas mudar hábitos comportamentais é difícil, e os críticos, por vezes, não aprovam o sabor dos ingredientes que não são carne, como a proteína de ervilha. A indústria da carne criada em laboratório acredita que a tecnologia que têm disponível proporciona uma melhor opção.
"A promessa da carne cultivada [é a] de criar uma componente de sabor e textura e de proporcionar sustentabilidade", afirmou Gautam Godhwani, sócio-gerente da Good Startup, uma empresa de capital de risco sediada em Singapura que investiu em oito start-ups de carne cultivada. "As pessoas querem comer os alimentos da sua infância."
A forma como funciona esta produção de carne é bastante simples. Utilizando a biopsia de um animal do tamanho de um dado, os cientistas conseguem isolar células de alta qualidade de diferentes partes do tecido. Depois, alimentam as células com nutrientes para que possam crescer eficientemente em condições controladas. Por fim, são colocadas em biorreatores de aço, onde crescem até estarem prontas para serem colhidas e transformadas, digamos assim, em almôndegas.
Os apoiantes dizem que o produto final é muito mais "limpo" do que o que está atualmente disponível nas prateleiras dos supermercados.
"Não temos de criar o animal inteiro", afirmou Dillon. "Podemos apenas cultivar as partes que queremos e que são nutritivas e deliciosas."
O processo leva cerca de três semanas, diz a Ivy Farm, cujo nome é um trocadilho da sigla IV ou "in vitro". Embora se estejam a fazer as mesmas experiências com frango e carne de vaca, o arranque está centrado primeiro na carne de porco picada, que o chef Schomberg transformou em cachorros-quentes, salsichas e gyosas.
Reguladores não são o único obstáculo
O sector teve um enorme avanço no mês passado quando a Food and Drug Administration apoiou as conclusões de segurança da Upside Foods, uma empresa em fase de arranque na Califórnia que produz frangos criados em laboratório. Na sequência de inspeções adicionais do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, o frango poderá ser autorizado a ser vendido aos consumidores.
O processo de regulamentação na União Europeia e no Reino Unido parece enfrentar ainda algumas complicações. (Tive de assinar uma declaração antes de provar a comida), mas Ed Steele, cofundador da Hoxton Farms, uma empresa de Londres que desenvolve gordura cultivada, disse-me que a notícia da FDA era "um enorme avanço para toda a indústria".
Com o caminho para o mercado a tornar-se mais evidente, as empresas precisam de descodificar rapidamente o segredo para a produção em massa – que será a única forma de poderem fazer a transição da criação de pequenos carregamentos para o abastecimento de restaurantes e mercearias. A Ivy Farm pode produzir cerca de 3.000 kg de carne por ano graças ao "Betty". É carne vermelha suficiente para cobrir o consumo anual de menos de 80 americanos, de acordo com estimativas norte-americanas.
"Nós sabemos como cultivar células. Sabemos como transformá-las em componentes da carne" afirmou Elliot Swartz, cientista líder para a carne cultivada no Good Food Institute, um grupo de reflexão que trabalha no desenvolvimento de proteínas alternativas. "Mas nunca o fizemos à escala necessária para a alimentação."
Não há garantias de que o processo possa ser simplesmente replicado com tanques maiores, algo que a Ivy Farm está interessada em testar nos Estados Unidos. As soluções nutricionais para alimentar as células são também constituídas por componentes historicamente utilizados pela indústria biofarmacêutica. Os abastecimentos podem ser limitados e são caros.
"A maior parte da indústria tem de utilizar materiais [que têm um custo] para investigação médica", explicou Marianne Ellis, professora da Universidade de Bath, em Londres, que está a estudar esta questão.
A inovação é possível, mas requer investimento e as empresas em fase de arranque enfrentam um clima económico cada vez mais difícil, o que pode limitar o financiamento. De acordo com dados da PitchBook, os capitalistas de risco investiram mais de 3 mil milhões de dólares em startups de carne cultivada nos últimos dois anos. Mas os receios de uma recessão global tem alimentado o ceticismo face a empresas que não serão rentáveis durante muito tempo.
Estaria disposto a provar?
Mesmo ultrapassando estes obstáculos, continua a precisar de clientes. Caso contrário, não sobrevive.
A Food Standards Agency do Reino Unido revelou que um terço dos consumidores do país era capaz de experimentar carne cultivada. Cerca de 60% estavam dispostos a comer produtos à base de plantas, muitos dos quais já se encontram no mercado.
Essa diferença não impede a Ivy Farm de avançar com as suas propostas. A empresa está a trabalhar com o Grupo Dennis, que construiu fábricas para empresas como a Danone, para aumentar as suas opções nos Estados Unidos.
Entretanto, existem startups que vão desde o Japão até Israel e Austrália que estão a melhorar os seus produtos, desde bifes de vaca criados em laboratório a salmão para sushi. Estão até a trabalhar na criação de foie gras cultivado, um sinal de que os consumidores de luxo serão, provavelmente, os primeiros a experimentar estas inovações.
Mas o que é vendido em restaurantes e mercearias de topo, numa fase inicial, pode não ser 100% produzido em laboratório. Por exemplo, as almôndegas que foram servidas consistiam apenas em 65% de carne de porco cultivada. Havia uma mistura com carne vegetal, bem como migalhas de pão e diversos temperos.
"Penso que toda a indústria da carne cultivada será, numa primeira fase, híbrida", afirmou Dillon da Ivy Farm.
Fonte: CNN Portugal